sábado, 5 de novembro de 2016

Há quarenta anos, o pontal de Atafona sem defesa viu o mar avançando

(Fotos: Ralph Braz | Blog Pense Diferente)
Em 1976, a letra da canção de Dorival Caymmi que diz “o mar quando quebra na praia” deixou de ser bonita no Pontal de Atafona, uma rara paisagem do litoral brasileiro. A partir daquele ano, o pontal mudaria ao longo dos próximos 40 anos, vítima de uma espécie de tsunami homeopático. Apático, o Pontal sem defesa viu o mar avançando, mas ninguém tinha certeza de aonde chegaria. Ninguém poderia imaginar o que ele engoliria. Refresquem as mentes e concluam que, precisamente, o mar arrasou quarteirões: uma vila inteira de pescadores, um posto de gasolina, quatro frigoríficos, uma escola, o Farol e a pequena Igreja de Nossa Senhora dos Navegantes.



Era um mar em fúria, sem pressa, que os mais velhos afirmam que está voltando à sua origem, recuperando o terreno perdido de forma perversa. O povo que habitava o Pontal era destemido e acreditava que o mar iria dar meia volta em sua reviravolta e que as ondas que vinham voltariam. Veio gente de todo lugar para estudar o fenômeno e o diagnóstico era variado para definir um mar desvairado.



No final dos anos 80, quando o mar deu um golpe mortal no Pontal, derrubando o seu Farol e sua igreja, confusos cientistas davam pistas enquanto surgiam outras explicações, algumas místicas. O dia em que o mar começou a entrar na pequenina Igreja de Nossa Senhora dos Navegantes, pela porta da frente, cercando-a, ficou mais perceptível que o templo foi construído de costas para ele.


Pensamentos rápidos. Alguém pensou em trocar a porta de lugar, o que implicaria também em trocar a posição do altar, de modo a deixar a imagem da santa de cara para o mar. As devotas da santa, moradoras do Pontal, afirmavam que a protetora dos navegantes jamais poderia ser colocada de costas para o mar, como o subúrbio do Rio de Janeiro se ressente de o Corcovado estar de braços abertos de frente para a Zona Sul.

Pensaram rápido, mas o mar fora mais ligeiro. Naquele final da manhã de um dia de março, as águas cercaram a igreja por todos os lados. Era pau e pedra, era o fim do caminho. Não era hora de oração e, sim, de ação. Só restava tirar, por ordem de importância, o que estava no templo. Nossa Senhora dos Navegantes foi a primeira a ser resgatada e depois foram os outros santos, e, por fim, os bancos.


Quando o mar dava trégua, o vento que também andava virado criava dunas, deixando os moradores que resistiam encurralados. As casas viraram trincheiras e o cenário era de uma guerra que o mar havia vencido. Moradores inconformados tentavam resistir alegando não ter para onde ir.

Não satisfeito, o mar continuou avançando, em toda linha da praia. A maior casa de Atafona, da família proprietária da extinta Usina São João, em Campos, com uma dúzia de suítes, perdeu seu ‘habite-se’. Os donos chegaram a contratar botânicos para plantar, na areia, vegetação capaz de conter as ondas, mas tudo foi em vão. Não havia como deter o mar e a mansão, conhecida como Forte São João, foi comprada de porteira fechada para ser desmontada.


O asfalto da estrada litorânea desmoronou. Ruas no entorno desapareceram pela metade e o único edifício da praia, o Julinho, que bravamente resistia, um dia despencou, mas já estava desabitado. Em vez da poesia que na areia se escrevia, e que fora literalmente apagada pelas ondas, pichações de versículos bíblicos anunciavam que tudo aquilo era o início do final dos tempos.


Nos últimos anos, o mar havia dado uma aliviada. Afastou-se um punhado de metros e deixou suas ondas sossegadas. O Pontal havia recuperado um pouco do seu potencial turístico, como no tempo do bar do Espanhol. A poesia havia voltado a ser escrita em suas areias e, no verão de 2010, poesias com textos lindos chegaram mais para perto e festejaram o Pontal com um espetáculo a céu, rio e mar aberto, em noites enluaradas, salpicadas de estrelas.


Mas agora o mar volta a bater. A Caixa D´Água já desativada está a um passo da queda. O mar continua avançando. Parece ser um mapa ateu, que avança metro a metro todos os anos, destruindo um cenário de cinema, afogando poemas, inspirando profetas.















Fonte: Terceira Via | Blog Pense Diferente