Campos dos Goytacazes é a primeira cidade do Estado do Rio de Janeiro e a quinta do país em resgates de trabalhadores submetidos a condições análogas à escravidão. Entre 1995 e 2022, foram 982 pessoas resgatadas no município, aponta o Observatório da Erradicação do Trabalho Escravo e do Tráfico de Pessoas no Brasil. O número corresponde a 56,66% do total (1.733) registrado em todo o território fluminense no mesmo período.
Os dados chamam atenção em um momento em que o assunto volta a ocupar o noticiário após mais de 200 pessoas serem flagradas em situação degradante de trabalho em vinícolas de Bento Gonçalves, no Rio Grande do Sul, e, segundo especialistas, revelam consequências duradouras de práticas que determinaram, ao longo dos últimos séculos, o próprio trabalho rural na cidade, cuja história é marcada pelo emprego de mão de obra escravizada.
Segundo a procuradora do Trabalho Guadalupe Couto, a cidade de Campos não é apenas destaque no Brasil em número de resgatados, mas também o Município onde muitos dos trabalhadores flagrados em condições análogas a escravidão declararam ter nascido ou viver. “Campos é o 5º município de naturalidade dos resgatados no Brasil (322), e o 4º do país em que os resgatados declararam residir (392)”, diz.
De acordo com o Ministério Público do Trabalho no Rio de Janeiro (MPT-RJ), houve 17 operações fiscais na região ao longo das últimas duas décadas. Os anos que registraram maior número de resgates foram 2003 e 2009, diz a também procuradora Juliana Gois, coordenadora da Procuradoria do Trabalho no Município (PTM) de Campos dos Goytacazes. “Em 2003 foram mais de 320 resgatados, e em 2009, mais de 520. Recentemente, em 2019, também houve resgates. Nas últimas fiscalizações rurais, no entanto, temos encontrado irregularidades trabalhistas, mas não ao ponto de configurar uma das hipóteses do artigo 149 do Código Penal Brasileiro”, revela.
O dispositivo legal citado pela procuradora recebeu, em 2003, nova redação que discriminou as condutas que configuram a condição análoga à de escravizado.
“Trata-se de uma prática caracterizada pela submissão do trabalhador, que é o sujeito mais frágil da relação contratual, à realização de trabalhos forçados, com jornada exaustiva e, na maioria das vezes, em condições degradantes e com restrição ao direito de locomoção, ou seja, o direito de ir e vir, em razão de dívida contraída com o empregador ou preposto”, explica o advogado trabalhista Christiano Fagundes.
Maioria dos resgates acontece no campo
O setor econômico que mais emprega esse tipo de mão de obra em Campos é da cana-de-açúcar, garante a procuradora Juliana Gois: “No setor urbano, a construção civil e o setor têxtil lideram a prática. Mas, 87% dos resgates ocorrem no campo, em atividades de pecuária e agricultura. E na nossa região, o setor de cana-de-açúcar se destaca”.
Presidente do Sindicato de Trabalhadores e Trabalhadoras Rurais de Campos, Paulo Honorato coleciona histórias de situações de trabalho análogas à escravidão ao longo dos últimos 40 anos, mas aponta duas que o marcaram especialmente.
“Na Usina Novo Horizonte, a primeira a falir no Estado do Rio, em 1987, havia uma fazenda onde os trabalhadores eram obrigados a pagar aluguel de casas quase caindo aos pedaços, sem água e nem luz. Tudo o que se fazia de dinheiro ficava ali, pois as roupas e os alimentos tinham que ser comprados no bazar. Vimos uma criança morrer de fome, sem qualquer assistência médica. Já na Usina Santa Cruz, encontramos, durante uma fiscalização junto ao MPT-RJ, uma situação subumana no alojamento dos trabalhadores. As camas eram três, uma por cima da outra. Eram 30 homens usando três banheiros. E a carne destinada à alimentação estava estragada”, recorda.
Para a socióloga Simone Pedro, a ocorrência de casos de trabalho análogo à escravidão em Campos revela “como as relações de trabalho, sobretudo no campo, obtiveram pouquíssimas transformações após a assinatura da Lei Áurea, no final do século XIX”.
“Mesmo assalariando, os proprietários das usinas conseguiam fazer a manutenção do ‘trabalho em troca de casa e comida’, já que as casas desses trabalhadores pertenciam geralmente às usinas, assim como os estabelecimentos comerciais onde os mesmos compravam o alimento para abastecer suas famílias. Sendo assim, esse contexto é marcado por novas configurações de dependência para integridade do trabalhador”, analisa.
Isso gerou consequências duradouras sobre a percepção da sociedade campista acerca da escravização e de seu uso para fornecimento de força de trabalho, diz a socióloga: “a subvalorização do trabalhador, sobretudo quando atribuída sistematicamente a uma maioria de pessoas pretas, reforça uma percepção social da existência de superioridade de alguns grupos culturais sobre outros. É a reprodução da nossa estrutura social racista, que submete há séculos às mesmas condições de trabalho vil.”
Problema pode ser maior do que mostram os números
Os relatos e números, no entanto, são apenas a superfície visível de um problema mais profundo, alerta o professor e pesquisador Luís Henrique da Costa Leão, da Universidade Federal Fluminense (UFF), que estudou casos de trabalho análogo à escravidão no Norte Fluminense. “Os dados do Observatório dizem respeito a trabalhadores resgatados, ou seja, cobrem uma pequena fração. Ele expressa aquilo que foi captado pela fiscalização do trabalho em um determinado período. Esse dado pode ser considerado um indício de uma realidade muito mais ampla e complexa. Ao redor do mundo, a estimativa do número de pessoas em situação de escravização cresceu de aproximadamente 20 milhões em 1999 para cerca de 50 milhões hoje, segundo a Organização Internacional do Trabalho”, diz.
A juíza do Trabalho Daniela Muller chama atenção para o funcionamento dos mecanismos de coação do trabalhador, que nem sempre incluem imagens tradicionalmente associadas à escravidão, como a ausência de remuneração, o confinamento e o emprego de violência física, o que pode contribuir para invisibilizar a prática. “São pouquíssimas as vezes que a gente vai ver um cerceamento de liberdade mais efetivo, com, por exemplo, uma pessoa sendo trancada ou uma vigilância ostensiva armada que impeça a pessoa de sair. O que prende o trabalhador naquela situação são outras circunstâncias que não a coação propriamente dita. A dívida, a pobreza, o fato de a pessoa ter sido deslocada para uma região onde ela não tenha nenhuma referência. Então, a porta não está fechada, mas a pessoa, de fato, não tem como sair dali”, explica a juíza, que é segunda diretora cultural da Associação dos Magistrados da Justiça do Trabalho da 1ª Região (Amatra1).
Pós-resgate
O II Plano Nacional para a Erradicação do Trabalho Escravo, lançado pelo Governo Federal em 2008, estabelece que pessoas resgatadas em condição de trabalho análoga à escravidão sejam encaminhadas à Assistência Social dos estados e municípios. Esse atendimento, no entanto, “não tem sido realizado”, diz a procuradora Guadalupe Couto. Para acolher os resgatados, o MPT-RJ criou, em parceria com a Cáritas Arquidiocesana do Rio, o Projeto Ação Integrada: Resgatando a Cidadania, do qual a procuradora é gerente.
“O objetivo é romper com o ciclo do trabalho escravo contemporâneo. Para isso, o projeto oferece acompanhamento psicossocial; custeio de hotel até que a vítima retorne à sua cidade de origem ou seja inserida em abrigo público; custeio de cursos profissionalizantes para que recupere a dignidade e seja reinserida no mercado do trabalho; articulação de rede nos territórios com outras organizações da sociedade civil e do poder público; comunicação e mobilização social; e projetos de prevenção com grupos expostos ao risco de trabalho escravo”, enumera.
Cooperação — Em janeiro do ano passado, o MPT-RJ e a Prefeitura de Campos assinaram um termo de cooperação contra o trabalho escravo. Com isso, a Secretaria Municipal de Desenvolvimento Humano aderiu ao Projeto Estratégico Capacitação da Rede de Atendimento às Vítimas de Escravidão Contemporânea (PRECAV), que visa conscientizar e capacitar profissionais da Rede de Atendimento do município sobre estratégias de prevenção e fortalecer a rede de assistência às vítimas de tráfico de pessoas e trabalho em condição análoga à de escravo.