Em Petrópolis, pesquisadores tentam montar um quebra-cabeça histórico. Em jogo, achados dos tempos do imperador e do começo da República descobertos sob o jardim do Palácio de Cristal. Escavações arqueológicas em volta do monumento, tombado pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan) e inaugurado em 1884 pela Princesa Isabel com um grande baile, têm trazido à tona fragmentos do passado da cidade serrana que recontam também parte da história do Brasil. Desde maio, mais de duas mil peças já foram encontradas, entre elas pedaços de louças inglesas usadas pela elite do século XIX e de stoneware — cerâmica que vinha nessa época da Alemanha, Bélgica e Holanda —, faianças mais brutas, ferraduras, vidros (que podem ser originais do palácio) e até um cachimbo de porcelana.
Uma pequena parcela das descobertas foi colocada em exposição na frente do palácio, fechado desde o Natal de 2019 ao público. Na época, teve início uma reforma nos sanitários e de acessibilidade. O projeto também incluía parte elétrica, com intervenções no jardim. A obra, no entanto, foi embargada pelo Iphan em fevereiro de 2020 por falta de autorização em relação ao canteiros e também do envio de um projeto de monitoramento arqueológico pela prefeitura. Passado mais de um ano, as escavações tiveram início, com descobertas que têm levado a equipe de arqueologia contratada cada vez ir mais fundo na área do Palácio de Cristal, que antes era usado como passeio público.
— Há materiais ali da primeira metade do século XIX, como fragmentos de louça inglesa. Mas é possível que tenha materiais até do século XVIII — diz Giovani Scaramella, diretor da empresa Grifo Arqueologia, responsável pelos trabalhos, explicando que a área pode ter recebidos materiais de outros pontos de Petrópolis por ter passado por aterros. — Esses aterros podem estar ligados a inundações na cidade e a remodelamentos da praça, e há chance de terem levado junto louças de famílias que viviam em Petrópolis. Nosso intuito agora é fazer sondagens mais profundas próximas à entrada, indo além dos 60 centímetros de cava, atingindo um metro e meio e chegando a materiais mais antigos, relacionados à história da praça.
No local, o mestre em arqueologia Kedma Gomes, que veio de Lisboa, comanda o peneiramento do material. Até agora, foram escavados um total de 230 metros no jardim, inicialmente remexido para a abertura de dutos elétricos e hidráulicos.
—Já encontramos fragmentos de xícara, de faiança fina, europeia, e de faiança histórica, porcelanas, azulejo português e mesmo um fragmento de anilha de esgoto antiga. Há também muito vidro plano, que pode ser do próprio palácio, que passou por restaurações. Já achamos em lotes diferentes pedaços de um mesmo prato. É um grande quebra-cabeça — afirma Kedma, que tenta encontrar a base original do cruzeiro que fica na frente do palácio. — O patrimônio tem que ser conservado no lugar dele. Nosso compromisso é mostrar a história como ela é.
O projeto tem um custo de R$ 174 mil, bancados pela prefeitura, que está sob a gestão do prefeito interino Hingo Hammes. De acordo com o governo, o plano é de reabrir o palácio ainda este ano com todos os trabalhos concluídos. As obras de atualização do monumento são orçadas em R$ 875 mil.
No momento, tudo que é recolhido vai para um laboratório em Mendes, onde análises ajudarão a contar com mais precisão o passado de cada peça. Inclusive se algumas delas podem ter pertencido à família imperial. Nessa busca por ouro da época do Imperador Pedro II, há esperanças de que seja encontrado um marco de pedra em referência a Koblenz — o nome da cidade alemã, onde os rios Reno e Mosel se encontram, batizava a área, que também era conhecida como Praça da Confluência (no lugar se encontram os rios Quitandinha e Piabanha).
— Ali surgiu como uma praça em 1846. E a primeira notícia de uma ação oficial na praça foi de uma missa em homenagem à vinda dos colonos alemães. Como eles eram protestantes, depois passaram a ser celebrados cultos no local. Até que começaram a acontecer, por volta de 1870, exposições de hortícolas, como frutas legumes, plantas e flores. Era como se fosse uma feira de elite — contextualiza a historiadora e educadora patrimonial da Grifo, Roselene Martins.
Ela lembra que essas exposições, que ocorriam uma vez por ano, faziam tanto sucesso que, a partir da ideia de Pedro II de um espaço permanente para elas, o Conde d’Eu, marido da Princesa Isabel e presidente da Sociedade Agrícola de Petrópolis, inspirado no Crystal Palace de Londres, encomendou às oficinas da Société Anonyme de Saint-Sauveur, na cidade de Arras, na França, o palácio pré-fabricado. Era uma novidade.
O palácio representa um momento em que a monarquia estava se mostrando atual para o século XIX. Trazer esse prédio de vidro e ferro inspirado nos ingleses, que eram o suprassumo da revolução industrial, simbolizava uma monarquia moderna, o que deveria ser a marca do Segundo Reinado — afirma Roselene.
A Quarta Exposição da Sociedade Agrícola e Hortícula de Petrópolis, a primeira ali, em 1884, teve a presença do imperador e dos seus ministros e corpo diplomático. A ornamentação ficou a cargo do do botânico francês Auguste François Marie Glaziou. Outro grande evento no espaço ocorreu no chuvoso domingo de Páscoa de 1888: a Princesa Isabel e o Conde d´Eu, na companhia dos filhos, entregaram 127 cartas de alforria a escravizados da cidade. O advento da República, em 1889, marca o início de um longo período de decadência da imponente construção.
Foram muitos usos (alguns pouco nobres, como rinque de patinação e boliche) e fases de abandono ao longo do século XX. O poeta Carlos Drummond de Andrade, na ocasião dos cem anos do monumento, escreveu no Jornal do Brasil sobre a “vária sorte” do Palácio de Cristal, “engrandecido e enxovalhado conforme o capricho dos homens”. Turistas, que batem aos montes no portão todos os dias (em 2019, o endereço recebeu cerca de 120 mil pessoas, boa parte para a Bauernfest, ou Festa do Colono Alemão), e petropolitanos esperam que o patrimônio seja logo devolvido.
— Uma coisa que chama a atenção na sociedade de Petrópolis é que há a intenção de preservação do prédio. Há o desejo de utilizar esse espaço não só para a Bauernfest. É um patrimônio que a sociedade deveria se apropriar não só com uma festa do colono alemão. Eu vejo essa cobrança da população— aponta Roselene.
Fonte: Extra