Hoje celebra-se o bicentenário de nascimento de Dom Pedro II, o primeiro estadista brasileiro a conquistar o respeito de intelectuais, cientistas, escritores, pensadores e chefes de Estado do mundo inteiro
O dia 1 de dezembro de 1825 foi de muita festa no Rio de Janeiro. A capital do Império celebrava o terceiro aniversário de coroação do imperador Dom Pedro I com diversos eventos, incluindo desfile militar, missa em Ação de Graças na Capela Imperial e beija-mão no Paço Imperial. Fogos de artifício completaram a festa iluminando o céu naquela noite quente e abafada, que prenunciava o começo do verão carioca.
Entre as ausências dos festejos, uma foi especialmente notada, a da imperatriz Leopoldina de Habsburgo. A esposa de Dom Pedro I tinha bons motivos para ficar em casa. Longe do burburinho, no Palácio de São Cristóvão, onde residia a família, Leopoldina estava prestes a dar à luz mais um filho, o sexto. O primogênito e herdeiro natural, Dom João Carlos, morrera com 11 meses de idade, em 1822, e todas as outras eram do sexo feminino: as princesas Maria da Glória, Januária, Paula Mariana e Francisca.
Logo, havia grande expectativa em torno de mais um filho homem. Após um parto complicado por conta do tamanho e da posição da criança no ventre materno, o varão da família, que receberia o mesmo nome do pai, Pedro, chegou nas primeiras horas da madrugada do dia 2 de dezembro.
Seguindo a tradição das casas reais europeias, ao qual era descendente, o menino de olhos claros, típicos dos Habsburgo, foi batizado na Capela Imperial, atual igreja Nossa Senhora do Carmo da Antiga Sé, com um nome extenso e pomposo: Pedro de Alcântara João Carlos Leopoldo Salvador Bibiano Francisco Xavier de Paula Leocádio Miguel Gabriel Rafael Gonzaga. Ou apenas Dom Pedro II, o segundo imperador do Brasil e governante que mais tempo ocupou o posto de líder da nação, incluindo a era republicana: 49 anos, entre 1840 e 1889, quando a monarquia foi derrubada pela República.
O bicentenário de Dom Pedro II nos convida a revisitar a sua figura com mais profundidade”, afirma o pedagogo e doutor em educação Rony Rei do Nascimento Silva, professor de pós-graduação da Universidade Tiradentes (Unit), em Sergipe.
O estudioso explica que, apesar de governar em um sistema monárquico, Pedro II tinha traços bastante modernos: valorizava a ciência, a educação e a liberdade de expressão. “Seu reinado consolidou o Brasil como nação unificada, territorialmente coesa e com relativa estabilidade política, especialmente se comparado aos vizinhos latino-americanos no século 19”, diz Nascimento Silva.
Os primeiros anos não foram fáceis para o jovem Pedro, que ficou órfão de mãe com apenas um ano de idade e, aos cinco, foi separado do pai, que abdicou ao trono em 1831 para assumir o reinado em Portugal. Os dois, apesar de intensa troca de correspondência, nunca mais se veriam. A ausência dos pais no processo de formação da criança, aliado a uma vida repleta de regras rígidas de comportamento e postura, impostas desde a primeira infância, contribuiria para a personalidade melancólica e reservada que acompanharia o monarca vida afora.
“Dom Pedro II passou por diversas situações traumáticas. Sua personalidade era marcada pela introspecção e certa tristeza contida, talvez por ter sido privado de uma infância comum. Parecia carregar o fardo do poder mais como um dever do que um privilégio”, diz Silva, que ressalta: “ainda assim, essa rigidez emocional se traduzia em compromisso cívico e responsabilidade pública.”
O historiador André Figueiredo Rodrigues, professor da Universidade Estadual Paulista (Unesp), segue o mesmo raciocínio e explica que Dom Pedro II era sensível e tinha suas inseguranças e medos, como qualquer pessoa comum. “Na infância, sentia-se sozinho. Na vida adulta, carregava um peso enorme de responsabilidades e mantinha-se reservado, sendo que, por vezes, não escondia a falta de identificação com o cargo de imperador do Brasil”.
Tutores conselheiros
Após o retorno definitivo do pai a Portugal, o pequeno Pedro, já reconhecido como herdeiro da Coroa, ficou aos cuidados dos seus tutores. O primeiro deles foi José Bonifácio de Andrada e Silva, o patriarca da Independência, e, posteriormente, Manuel Inácio Pinto Coelho, o marquês de Itanhaém. Ambos assumiram a missão de criar e educar o menino que um dia ocuparia o trono da realeza. A proposta era preparar o futuro dirigente da melhor maneira possível, tornando-o apto a conduzir os destinos da nação.
Querendo evitar o mesmo desleixo com que o pai havia sido educado, seus tutores lhe impuseram desde cedo disciplina e orientação adequada”, explica o historiador Rodrigo Trespach, autor do recém-lançado Verde e amarelo – uma história das dinastias Bragança e Habsburgo (editora Globolivros).
Conforme registrou o historiador José Murilo de Carvalho, “seus educadores procuraram fazer dele um chefe de Estado perfeito, sem paixões, escravo das leis e do dever, quase uma máquina de governar.”
A desejada preparação implicava submeter o garoto a uma educação rígida e repleta de estudos, diferentemente de Dom Pedro I, que sempre fora indisciplinado e pouco afeito aos estudos, algo que se arrependeria depois, conforme deixou registrado em cartas.
O príncipe herdeiro, por sua vez, acordava cedo e dormia tarde, com poucas horas para o lazer e a maior parte do tempo era dedicada às lições, em horários rígidos. De acordo com as regras estabelecidas pelo marquês de Itanhaém, Dom Pedro II se levantava às 7 horas e tinha uma hora para o asseio pessoal, vestir-se e fazer as orações. Em seguida, tomava o café da manhã e, às 9 horas, começavam os estudos, que seguiam até as 11h30. Depois disso ele poderia brincar até o almoço, às 14 horas, e, em seguida, ver as irmãs. Por volta das 16h, passeio pelos jardins e leituras. No almoço e nos passeios os assuntos deveriam se resumir às disciplinas escolares. Às 20h da noite, oração; às 21h, ceia, e, às 21h30, ele deveria estar na cama para dormir.
“Pontualidade, moderação e disciplina que ele levaria para o resto da vida”, explica Trespach. Era bastante dedicado aos estudos. Aos treze anos, o herdeiro do trono conversava, lia e escrevia em inglês e francês. Também era versado em latim e mais tarde começou a estudar outros idiomas, incluindo hebraico, russo, árabe e tupi-guarani. Ao longo de sua formação estudantil, recebeu aulas de política, literatura, geografia, ciências naturais, astronomia, desenho, pintura, caligrafia, desenho, pintura, música, esgrima e equitação.
A rotina rigorosa em relação aos deveres não impedia, porém, momentos de descontração e brincadeiras no cotidiano do príncipe e suas irmãs no Palácio da Quinta da Boa Vista, em São Cristóvão, onde residia a família imperial. Entre as brincadeiras prediletas das crianças estavam o entrudo e teatrinho. Uma grande novidade gastronômica daquela época despertou o paladar do menino imperador: o sorvete. “Já tomei sorvete de limão e baunilha”, registrou, em 1834, numa carta escrita à irmã que morava em Portugal e se tornaria rainha daquele país, dona Maria II.
Dom Pedro II também se interessou, segundo o historiador Paulo Rezzutti, pela comunicação telegráfica via cabos submarinos. Isso o fez trazer ao Brasil o engenheiro britânico William Thomson, um dos maiores especialistas sobre o assunto, fazendo o Brasil ser um dos primeiros países da América a se comunicar com a Europa por telégrafo submarino. O serviço de ligação entre Lisboa e Recife foi inaugurado em 1874.
O lado intelectual e científico de Pedro II é uma herança materna. Criada nos melhores moldes dos Habsburgo da Áustria, dona Leopoldina era poliglota e estudou diversas disciplinas, como geometria, filologia e numismática. Era apaixonada por botânica, mineralogia e ciências naturais, chegando a montar um pequeno museu mineralógico no Palácio de São Cristóvão.
Acredito que Dom Pedro II herdou muito da mãe, em personalidade e gosto pelos estudos. Dona Leopoldina era muito inteligente, amante dos livros e das ciências”, explica Trespach.
Enquanto o herdeiro da coroa estudava e se preparava para assumir o comando da nação quando atingisse a maioridade, o país entrava em ebulição, com revoltas e movimentos separatistas nas províncias do norte, nordeste e sul. No Rio de Janeiro, o clima também era tenso no período regencial com as disputas políticas entre conservadores e liberais. Havia ainda o temor de reversão de todo o processo de independência do país.
Golpe da maioridade
Para garantir a unificação do território e pacificação do país, a solução encontrada pelos regentes e políticos governistas foi antecipar a maioridade do monarca, abrindo caminho para o restauro do poder imperial. Após longa campanha nas ruas, na imprensa, no parlamento e nos meios políticos, o episódio conhecido como Golpe da Maioridade foi efetivado em julho de 1840, com aprovação do parlamento. A coroação do príncipe, que mal chegara à adolescência e completaria 15 anos em dezembro daquele ano, foi marcada para o ano seguinte.
Há diferentes versões sobre a reação de Dom Pedro II em relação à antecipação da própria maioridade e nomeação como senhor dos destinos da nação. Ao ser consultado sobre a possibilidade de assumir o poder em um país imenso, pobre, latifundiário e complexo com apenas 15 anos, o jovem teria respondido de prontidão: “quero já!”. O entusiasmo, porém, não teria sido tão grande assim, apontam os especialistas.
Estudos posteriores revelam que, na verdade, o príncipe estava alheio ao processo político em torno do seu nome e mais focado nos livros do que no clima político efervescente nas ruas e no parlamento. “Não tenho pensado nisso”, teria respondido aos defensores da maioridade. Outra leitura aponta que, após reunir-se com seus tutores e conselheiros para discutir a maioridade, teria respondido ao regente Araújo Lima que aceitava a missão com um monossilábico, porém emocionado, “sim”.
Independentemente da reação, o fato é que aceitou a missão que lhe foi destinada e, no dia 18 de julho de 1841, o Rio de Janeiro celebrou com toda pompa a coroação de Dom Pedro II, em um evento grandioso que marcou o início do que deveria ser um governo destinado a ser forte e estável, após o turbulento período regencial. As festividades se estenderam por vários dias, com uma programação que incluía eventos oficiais, bailes, desfiles e banquetes. Os primeiros atos oficiais assinados pelo jovem imperador foram marcados pela libertação simbólica de 20 escravizados e a criação do Hospício de Pedro II, a primeira instituição nacional para tratamento de transtornos mentais.
É complicado imaginarmos um menino de 15 anos sentado no trono de um país enorme, complexo, escravocrata, repleto de desigualdades e movimentos separatistas, semelhantes aos que existiam no restante da América Latina. Naquela época o pensamento não era diferente. O próprio imperador demonstrou seu desconforto com o cargo na época, conforme revela o autor Paulo Rezzutti no recém-lançado D. Pedro II – A história não contada (editora Record). Em carta inédita publicada no livro, o imperador confessa em documento enviado ao cunhado, o rei Fernando II de Portugal: “Quiseram que eu tivesse 18 anos aos 14”, escreveu.
Confortável no cargo ou não, o fato é que o governante assumiu as rédeas da nação e o Segundo Reinado foi marcado por altos e baixos, em todas as áreas da administração, e imensos desafios pessoais impostos ao monarca. Entre eles, lidar com o desconforto de governar um dos últimos países a abolir a escravidão e a Guerra do Paraguai (1864-1870), que deixou um saldo de milhares de mortos, além de imenso prejuízo político e econômico aos cofres públicos.
Monarquia constitucional
“Durante o governo de Dom Pedro II se estabeleceram os fundamentos do país unificado e continental. Foi nesse período, inclusive, que a diplomacia brasileira passou a internacionalmente reconhecida e respeitada”, explica Trespach, frisando que a monarquia brasileira era constitucional e não absolutista: “O imperador era uma peça na engrenagem. De grande importância, claro, pois detinha o Poder Moderador, uma balança entre o legislativo e o executivo”, diz Trespach.
Durante praticamente todo o seu longo reinado, Dom Pedro II demonstrou grande habilidade política para lidar com a política e os políticos. “Jamais indicava ministros que não poderia demitir, de modo que os amigos permaneciam fora das listas”, registra o jornalista e historiador Jorge Caldeira em História da riqueza do Brasil (editora Estação Brasil).
O monarca também possuía rara habilidade nas negociações com o legislativo. Do Paço Imperial, exercia uma supervisão fina do parlamento, sempre atento às movimentações dos deputados e senadores em relação ao governo. “Como conhecia ou se mantinha informado sobre todos os congressistas, era capaz de fazer bons convites”, explica Caldeira. “Com isso, os membros do legislativo se aquietaram. E passaram a apostar mais nos rapapés ao monarca, pois sabiam que dele, e só dele, vinham agora os convites para o Executivo”, completa o historiador.
Em relação à escravidão, a posição do imperador sempre foi dúbia. Pessoalmente era contra, mas pesava o fato escabroso do escravismo fazer parte da economia nacional desde o começo da colonização do país. Para se ter uma ideia, conforme explica o autor em História da riqueza no Brasil, até a abolição, os títulos de posse de um escravizado eram a garantia mais aceita em empréstimos de curto prazo, o que tornava o escravizado importante patrimônio financeiro.
“A atitude de Dom Pedro II em relação à escravidão é bastante intrigante. Ele governava um país que dependia da escravidão como sua principal fonte de trabalho”, diz Rodrigues, da Unesp. “É sabido que Dom Pedro II era contra a escravidão, que considerava uma vergonha para o país. Seu sonho em transformar o Brasil em uma potência científica esbarrava na escravidão, que era vista como um obstáculo ao desenvolvimento tecnológico e científico”, completa o historiador.








