(Arquivo pessoal - Foto: Ralph Braz ) |
Uma Campos na vida de Pirica “Quem não conhece Pirica, não conhece Campos”. Dada por ele mesmo numa entrevista informal em vídeo ao meu filho, Ícaro, adotado pelo entrevistado, essa era a melhor definição de Marcelo Silva Martins, o Pirica. E da sua exata correlação com a cidade, que amanheceu quinta mais triste com a sua morte precoce, aos 50 anos. Estava no Hospital Ferreira Machado (HFM), para onde fora levado algumas horas antes, após ser atropelado na noite de quarta, na subida da Beira Valão com a Salvador Corrêa, uma das raras da planície que o tinha em alta conta. E baixou “à úmida terra imposta” na manhã de ontem, no Campo da Paz, levando no caixão a bandeira de uma das suas maiores paixões em vida: o Fluminense Football Club.
Nos vários testemunhos que pipocaram após sua morte, alguns foram emblemáticos. Entre eles, o dado pelo amigo comum George Gomes Coutinho, sociólogo, cientista político, professor da UFF-Campos e músico nas horas vagas. Pois Pirica era, sem nenhum favor, um dos maiores conhecedores de blues e rock da cidade. Escreveu George e publiquei no blog Opiniões, ao final do texto para anunciar a morte sentida: “Filho das classes altas campistas, optou por fazer de sua existência algo entre o desbunde e o mais profundo ‘foda-se’ aos tradicionalismos da planície escravista. Ele debochava solenemente dos lambe botas da açucarocracia. Fazia sentido. Era filho legítimo da contracultura”.
Na definição do sociólogo está a de Pirica sobre si. Filho do hoje falecido empresário Maurício Martins, dono da Big 13, ele foi filho também do boom que as malharias tiveram na cidade nos anos 1980. Foi na década em cujo início nos conhecemos, ainda crianças, na colônia de férias do Auxiliadora. E no final da qual estudamos juntos, embora em turmas separadas, no mesmo colégio. Entre uma coisa e outra, teria fim a última ditadura militar brasileira, em 1985. A mesma que, 37 anos depois, alguns afirmam não ter existido. Os mesmos que pregam pela morte de crianças, questionando nelas a aplicação da vacina contra a Covid.
Criança e adolescente, Pirica sorveu da fase áurea das confecções. Como em outro testemunho, dado pessoalmente por outro amigo comum de adolescência, o médico Pedro Ribeiro Gomes: “Ninguém diria que aquele cara desdentado, quando criança, conheceu a Disney”. Pirica conheceu. E optou, na vida adulta, por rir do Mickey Mouse, seus príncipes encantados e Patetas, com a boca escancarada. Mas não cheia de dentes, como a cantada por Raul Seixas. Rir de deboche da vida burguesa, “ouro de tolo” a quem a mastigou, sorveu e cuspiu. Conhecer Pirica era conhecer Campos, tanto pela sua elite, quanto por quem não lhe dá a mínima. Sem nunca perder a capacidade de rir de si mesmo. E de, naturalmente, fazer rir.
Como também testemunhou ontem, em seu velório, o radialista Ricardo Salgado: “Pirica era a essência do bom humor; um humor infantil, um humor doce. Ele disse não à riqueza da família dele, mas não de uma maneira marginalizada. Ele foi viver a vida, foi curtir a vida. E curtiu a vida, em toda sua essência, à maneira dele. Era uma ótima pessoa. Quem não conheceu Pirica, não conheceu a essência do campista. Pirica era bemhumorado, Pirica era politizado, Pirica conhecia muito bem as coisas de Campos. Vai deixar um espaço muito grande no meio underground, no meio do rock, do blues. A juventude de Campos perdeu, talvez, um dos maiores bon vivants da nossa geração”.
Do tempo dos lados B dos discos, dos quais conhecia de cabeça todos os músicos de qualquer gravação de rock ou blues, Pirica nunca ignorou que há a outra face em qualquer moeda. Na contabilidade das suas, outro amigo comum, o empresário Pedro Vianna também deu seu testemunho. Marcado pela bifurcação entre a sua própria vida e a breve de Pirica: “Tinha uma personalidade sempre controversa desde novo. Como Eu, foi buscar no mundo das drogas uma fuga para o não enfrentamento de questões que não vêm ao caso agora externar. Sete de dezembro de 2000, no churrasquinho do Sangue Bom, por volta das 3h da manhã, foi o meu último diálogo com Ele. Dali, Eu saí para busca de uma nova forma de viver e Ele infelizmente não se permitiu a mesma oportunidade”. Na dúvida, como numa letra de blues, ficam os versos da “cantiga” de Dante Milano: “A vida é tempo perdido./ O que se ganha é bem pouco./ Que vale ao morto o vivido?/ Que vale ao vivo, tampouco?”. Cerca de duas décadas atrás, lembro de os ter repetido a Pirica, numa madrugada ébria daquelas conversas sobre tudo. Na afluência de alma entre os rios Paraíba do Sul e Mississipi, foi no Bar do Afrânio, pé sujo mais tradicional de uma planície deltaica. Bem perto de onde seu frequentador mais assíduo seria colhido por um carro e pela vida, após quedar sozinho no meio da rua e de uma outra noite, tantos anos depois.
Também lembro que, com o fundo de uma música brega que tocava no jukebox do Afrânio, Pirica protestou aos versos. E, com seus inconfundíveis dois dedos entre a boca e o bigode, ecoou em sua voz rouca de bluseiro a resposta às indagações do grande poeta modernista brasileiro: “A minha vida valeu!”. Pirica não morreu. Desaguou no Paraíba para encontrar Neivaldo na foz.
Publicado hoje na Folha da Manhã.