sábado, 14 de junho de 2025

Companheiros de calçada: ONGs ajudam pessoas em situação de rua e seus cães a sobreviver no Rio


“O cachorro é o melhor amigo do homem”, diz o ditado popular e reforça a sétima arte, no cinema. No Rio de Janeiro, essa amizade ganha uma camada a mais de sentido: nas calçadas da cidade, cães e pessoas em situação de rua formam uma dupla inseparável — de cuidado mútuo, proteção e sobrevivência.

O vínculo é tão profundo que, para muitos, é mais fácil permanecer em situação de rua do que se separar do animal para conseguir acolhimento em abrigos que não aceitam pets. É diante dessa realidade que iniciativas como os Médicos-Veterinários de Rua, a ONG Moradores de Ruas e Seus Cães (MRSC Rio) e É Por Amor atuam.


Em muitos casos, os tutores, mesmo sem posse de bens materiais, optam por dar tudo aos seus cães. Seja ração de melhor qualidade ou um cobertor improvisado que vira cama. O objetivo é simples: garantir que o amigo de quatro patas durma aquecido e seguro. Afinal, durante a noite, são eles que fazem as vezes de alarme, companhia e, sobretudo, escudo contra a violência.

“Existem vários aspectos a respeito dessas pessoas. O aspecto emocional — porque às vezes as pessoas só estão ali por causa desses animais. O aspecto da segurança, quando os cães estão por perto, as chances dos tutores serem agredidos diminuem. E o aspecto do dia a dia, do cuidado. Às vezes os tutores não cuidam deles mesmos, mas cuidam do animal”, explica o médico-veterinário Marco Antonio Andrade Rodrigues.

Marco é articulador do projeto Médicos-Veterinários de Rua no Rio de Janeiro, criado em 2021 e pioneiro no país. A proposta vai além do atendimento clínico: reúne profissionais e estudantes da saúde humana e animal em ações mensais com foco multidisciplinar.

O projeto esteve ativo até agosto de 2023, mas será retomado no dia 29 de junho, com uma grande ação na Catedral Metropolitana do Rio, em parceria com as universidades Estácio e Celso Lisboa.

“Em relação à saúde dos animais, no começo do projeto era comum ver muitos casos de parasitas, pulgas e carrapatos. Mas, com o tempo, os índices despencaram porque fazíamos controle mensal. Os tutores, mesmo em situação de rua, se comprometiam, cuidavam, e os animais voltavam muito bem. Raros os casos de maus-tratos. Esses bichos são tudo para essas pessoas”, afirma Marco.

Além da clínica veterinária, que oferece vacinação, vermifugação, exames e doação de ração e medicamentos, as ações incluem atendimento básico de saúde, orientações jurídicas, higiene, corte de cabelo e entrega de roupas.


Essa lógica também move o trabalho da Moradores de Rua e Seus Cães, braço carioca de uma ONG nascida em São Paulo. No Rio, a advogada Camila Azevedo de Paula coordena as atividades, que ocorrem duas vezes por mês em pontos fixos da cidade.

“As ações são realizadas em bairros mapeados. Priorizamos locais onde temos voluntários próximos, para dar assistência de forma contínua, não apenas em dias de ação”, explica.

Os tutores recebem roupas, kits de higiene e lanches. Os cães ganham ração, brinquedos, vacina, desparasitação e atendimento veterinário básico.

Quais são as doenças mais comuns nos animais?

Segundo a coordenadora, as zoonoses mais comuns manifestadas nos animais são: Cinomose, parvovirose e leishmaniose. Nas ações, vacinas contra raiva e a V10 (contra parvovirose e cinomose) são as principais oferecidas e aplicadas nos animais.

A dificuldade, porém, está no espaço. Afinal, os tutores são em maioria a população sem logradouros. Sem contar que, muitos também somem durante as famosas “limpezas”, onde a população é obrigada a se mudar do local para maquiar as principais ruas dos bairros mais famosos. É o que explica a coordenadora do MRSC no estado.

“Inúmeras vezes agendamos castração, acertamos tudo com o tutor e a clínica, e no dia combinado ele desaparece. Essas pessoas são empurradas de um lugar para outro”, lamenta.



Para dimensionar o problema, de acordo com o Observatório Brasileiro de Políticas Públicas com a População em Situação de Rua, da Universidade Federal de Minas Gerais, a estimativa era de 21.764 vivendo nas ruas da capital fluminense em 2023. Em relação à população de cachorros de rua, não há números absolutos.

Neste ano, o governo federal criou o RG para cães e gatos, o primeiro documento de registro de pets no Brasil.

No Rio, o Programa Seguir Em Frente realiza o atendimento de pessoas em situação de rua para encaminhá-las às unidades de acolhimento na cidade. A retirada das ruas, no entanto, não inclui os animais.



A ausência de abrigos pet friendly

Se para muitos o cachorro é uma companhia amorosa, para quem vive nas ruas ele também é âncora emocional, afeto incondicional e escudo contra a invisibilidade social. E é justamente esse vínculo que, muitas vezes, impede o ingresso em serviços de acolhimento. A maioria dos abrigos da rede pública não permite a entrada de animais. Sem alternativa, alguns tutores preferem resistir à proposta de sair da rua do que abandonar seu cão.

“O animal tem um papel fundamental na construção humana que nos leva a trabalhar fatores emocionais, contribuindo para o bem-estar. Para essa população, essa relação existe para além da companhia. São os animais que auxiliam nos vínculos afetivos, ajudam a lidar com a solidão, depressão e ansiedade. Isso reduz o estresse e melhora a interação social dessas pessoas, que vivem particularidades muito delicadas”, explica a assistente social Gabrielle Garofalo.

Ela aponta ainda para a consequência prática desse afeto. “Muitas vezes o usuário nega o acolhimento por acreditar que será necessário separar-se de seu animal. E opta pela condição de exposição à rua por conta desse fator”.

ONG É Por Amor

Segundo Márcio Elias, presidente da ONG É Por Amor, que atua em Manguinhos, na Zona Norte e no Centro do Rio, os animais também auxiliam na hora da abordagem à população de rua.

“As pessoas em geral na rua têm mais empatia quando as pessoas em situação de rua tem animais. A gente consegue uma abordagem bem legal quando a pessoa está com um animal, acaba criando um vínculo maior, porque ficamos brincando com o animal, tiramos foto”, conta.

A ONG também é outra que atua cruzando o cuidado com afeto. A organização distribui quentinhas, roupas e itens de higiene para a população de rua no município carioca, com doações arrecadadas no “boca a boca”.

Entre as políticas públicas voltadas à causa animal, o Castramóvel é iniciativa do Governo do Estado do Rio de Janeiro, que oferece serviços de castração gratuita em unidades móveis que circulam pelos bairros.