Recentemente, um estudo gerou polêmica ao concluir que os derivados da maconha podem ajudar a frear o desenvolvimento do Alzheimer. Mas sabia que há outras doenças que já têm comprovação científica para tratamento ou alívio de sintomas com o uso de derivados da cannabis? Saiba mais no texto de Carolina Samorano para o Metrópoles.
A maconha virou remédio. A despeito de polêmicas e narizes retorcidos de reprovação, desde o ano passado a Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) considera o canabidiol (CBD), uma das principais substâncias encontradas na maconha, oficialmente medicamento.
Desde março deste ano, o tetraidrocanabinol (THC) também está liberado. As duas substâncias são de uso controlado e devem ser prescritas por um médico. Por enquanto, basicamente para epilepsia em crianças – a brasiliense Katiele Fischer, mãe de Anny, é uma das principais caras da luta pela aprovação no Brasil. Mas a coisa está ganhando outra cara.
Na última semana, a maconha medicinal virou esperança também para pacientes de Alzheimer. Pesquisadores do Salk Institute, na Califórnia (EUA), encontraram evidências de que o THC tem potencial para remover a proteína beta-amiloide, que forma as “placas” no cérebro responsáveis pela doença. Mais de 30 milhões de pessoas têm Alzheimer no mundo.
A doença é um mal ainda sem muita explicação para a ciência, mas alguns estudos apontam para o acúmulo da proteína nas células nervosas, o que prejudicaria a comunicação entre os neurônios. A descoberta sobre o uso de THC ainda precisa de testes clínicos para que uma terapia seja definida.
Medicina faz as pazes com a maconha
O negócio é que o Alzheimer é um tópico a mais na extensa lista de doenças para as quais a ciência têm encontrado alguma relação de benefício com a maconha. Mais que uma “quebra de tabu”, o holofote ampliado representa, para os especialistas, uma reconciliação com a planta cuja história já começou com os dois pés na medicina.
“Esse medo todo da maconha é novo”, diz o neurocientista Renato Malcher, coautor do livro “Maconha, cérebro e saúde”. Segundo Malcher, professor do Departamento de Fisiologia da Universidade de Brasília, a maior parte da história da maconha é justamente como remédio, inclusive em casos para os quais a medicina moderna já endossa a eficácia com estudos.
“Há um artigo de 1843 de um médico irlandês descrevendo o uso de cannabis para tratar um caso muito parecido com o da Anny: sucessivas convulsões severas que começam no primeiro ano de vida. Ele que diz que isso salvou a vida da menina. Aí você imagina quantas vidas foram perdidas (com a proibição). Os médicos que ainda resistem estão sendo pouco científicos. Aliás, isso é injusto. Na verdade, eles não têm acesso às informações. A formação médica trouxe um ranço muito grande da maconha, uma visão distorcida.” – Renato Malcher
E ainda vai além: a importância das substâncias da cannabis para a saúde podem ser tão maiores do que a epilepsia que o especialista a compara com o que foi a penicilina no início do século: um divisor de águas. “É uma das linhas mais importantes da medicina”, afirma.
Para se ter acesso ao CBD ou ao THC hoje, não basta se dirigir até a “boca” mais próxima. O processo passa por uma avaliação na Anvisa. O médico é quem submete o pedido à agência, com um laudo que ateste que o paciente não respondeu bem a outros tratamentos disponíveis, uma receita com a dose e a quantidade detalhada e um termo de responsabilidade assinado por médico e paciente ou responsáveis.
A substância — que é importada e, por isso, cara — vem na forma de óleo hoje, dado a conta-gotas. Num futuro não muito distante, talvez seja encontrada em cápsulas na farmácia mais próxima de você.
“A proibição causa muito mais dano que o uso racional da substância. Mas o uso racional só é possível quando for regulamentado. E o primeiro passo para isso é regulamentar o uso médico.” – Renato Malcher
Para além do Alzheimer e da epilepsia, conheça outras doenças que já têm comprovação científica para tratamento ou alívio de sintomas com o uso de derivados da cannabis:
1. Esclerose múltipla:
Alguns pacientes já usavam maconha para aliviar sintomas da doença, até que a ciência resolveu investigar se a sensação de bem-estar era apenas pelo efeito da planta. Em dois estudos diferentes, a conclusão foi que essas pessoas não estavam assim tão erradas.
Em um deles, da Universidade de Tel Aviv, em Israel, a equipe isolou células imunes de ratos paralíticos que especificamente “atacavam” as células neurais e a medula e as trataram com CBD e THC. Nos dois casos, as células produziram menos moléculas inflamatórias, principalmente os tipos mais comumente relacionados à esclerose múltipla. Outros estudos mostram que a maconha pode devolver o controle de braços e pernas aos pacientes ao aliviar os espasmos musculares causados pela doença.
2. Dor:
O uso da cannabis para controle de dores fortes ou crônicas é objeto antigo de estudo da ciência. Até porque, segundo Renato Malcher, os efeitos colaterais da cannabis são “bem menos” graves que os da morfina, por exemplo, substância derivada do ópio. Um dos estudos mais recentes, publicado em outubro passado no “The Journal of Pain”, comparou 215 fumantes experientes que fumavam 2,5 g por dia com não fumantes entre 2004 e 2008. Todos sofriam de alguma dor crônica não relacionada ao câncer. Ao final, os fumantes relataram menos dor, melhor humor e nenhum risco aumentado de efeitos adversos em comparação aos não fumantes.
3. Morte por overdose de analgésicos:
Além de servir como tratamento ou alívio de sintomas, nos Estados Unidos, em estados onde a maconha é legalizada, o número de mortes por overdoses causadas por uso de analgésicos diminuiu em quase 25%, segundo um estudo publicado no JAMA Internal Medicine. Cerca de 100 pessoas morrem por dia no país por abuso de remédios para dor.
4. Enjoo causado por quimioterapia:
Nos Estados Unidos, desde os anos 1980 os médicos podem receitar aos seus pacientes de câncer e Aids medicamentos à base de THC sintético para aliviar as náuseas causadas pela quimioterapia – com nomes comerciais de Marinol e Cesamet.
Em um estudo do Hospital St. John, em Oklahoma, 38% dos pacientes de Aids que tomaram 5 miligramas de Marinol durante seis semanas tiveram mais apetite e menos enjoos comparado a apenas 8% do grupo do placebo. Em outra pesquisa, dessa vez na Suíça, os dois medicamentos se saíram melhor para controlar os vômitos do que os outros existentes para a mesma função.
5. Câncer:
Além de controlar os enjoos, alguns estudos têm mostrado que o CBD e o THC podem ser eficazes para frear o crescimento de células tumorais. Quem diz é a Sociedade Americana de Câncer. Pesquisas preliminares feitas em animais mostram que as substâncias podem prevenir o espalhamento de alguns tipos de câncer. Testes com humanos estão em andamento. Renato Malcher, da UnB, é ainda mais otimista: para além de tratamentos paralelos, ele acredita que os derivados da cannabis talvez um dia chegam a protagonistas do tratamento de alguns tumores.
6. Síndrome do pânico:
Um estudo de 2014 da Universidade de São Paulo publicado no International Journal of Neuropsychopharmacology investigou os efeitos de agonistas CB1 (similares aos canabinoides naturais) sobre mudanças comportamentais em ratos na presença de predadores – no caso, um gato vivo.
Concluíram que a substância ajuda a modular o chamado sistema endocanabinoide e, consequentemente, trazer sensação de alívio aos pacientes da síndrome. Outra pesquisa da universidade já havia chegado a resultados positivos também para controle de TOC.
7. Autismo:
O autismo é um dos tópicos mais recentes a entrar no foco dos estudiosos da cannabis medicinal. “A origem do autismo muitas vezes é parecida com a da epilepsia, um excesso de ativação neuronal”, diz Renato Malcher. A partir do ano que vem, o Brasil deve entrar no raio de pesquisas com um tratamento experimental para alguns pacientes autistas.
O estudo será conduzido por Renato Malcher em conjunto com outros dois médicos e patrocinado pela CBD RX, uma empresa produtora de óleo orgânico de canabidiol sediada no Colorado (EUA). A expectativa é que o tratamento possa auxiliar em sintomas como ansiedade, autoagressividade e dificuldade de interação social.